sexta-feira, 11 de junho de 2010

Entrevista

Pacto de cidadania

  ELEIÇÕES Votar é importante. Mas não basta. Cabe ao cidadão participar da vida pública, acompanhando o desempenho de seus representantes eleitos democraticamente. Nisto consiste fazer valer o pacto político que deve ser selado a cada processo eleitoral
 
  Luís Henrique Marques
 
  As portas de um novo processo eleitoral, esperanças e desesperanças sobre os destinos da sociedade brasileira vêm à tona, uma vez que é a partir das ações políticas que mudanças estruturais de uma comunidade ou sociedade podem ocorrer. O equívoco é pensar que as mudanças cabem apenas àqueles que são eleitos como representantes da população para cargos nas diferentes esferas do poder público. "Para James Madison, um dos grandes intérpretes das instituições políticas norte-americanas quando da implantação de sua democracia, a primeira condição para que uma nação seja democrática é que tenha uma sociedade capaz de criar um governo e, ao mesmo tempo, seja capaz de controlá-lo", afirma o especialista em democracia participativa, Alexandre Aragão.
  Com efeito, não basta o voto. Ele é apenas o primeiro passo de um processo contínuo que, num ambiente democrático, implica a conquista sempre maior da liberdade e da justiça social. Por isso, para Aragão, "a liberdade e a justiça social não são uma propriedade adquirida de uma vez por todas". "Elas foram plantadas no solo sociopolítico que deve ser fertilizado, diariamente, por ações de um público sempre mais instruído e articulado politicamente, senão secará e definhará", completa ele. 
  Em outras palavras, segundo o especialista, cabe ao cidadão acompanhar sempre com opiniões, sugestões, cobranças, aquilo que seus representantes no poder público estão fazendo ou deixando de fazer no que diz respeito à atenção aos direitos civis. E isso deve acontecer durante todo o período em que esses representantes estiverem ocupando os cargos públicos para os quais foram eleitos. Não apenas às vésperas de um processo eleitoral.
  De acordo com Sérgio Prévidi, presidente nacional do Movimento Político pela Unidade (MPpU), ligado ao Movimento dos Focolares, esse compromisso entre o cidadão e o seu representante eleito - o chamado pacto político - exige, quando do processo eleitoral, que se estabeleça um diálogo inicial entre ambos. "Assim sendo, o candidato apresenta suas propostas, dialoga com seus eleitores, ouve deles as suas necessidades, discute-as e, por fim, se estabelece um pacto entre as propostas do candidato e as reivindicações dos eleitores", explica Prévidi. 
  "No diálogo, se estabelece uma pauta mínima que o candidato se compromete em realizar e o eleitor em ajudar na realização, dentro das suas possibilidades", conclui. Uma postura eticamente definida, lealdade com os companheiros de partido e coligação, a manutenção de uma polêmica serena e digna - especialmente com os adversários - estão, segundo Prévidi, entre as outras exigências que devem ser observadas nesse pacto.
  Alexandre Aragão ressalta também que o candidato, uma vez eleito, deve manter a continuidade dos encontros com grupos organizados para os quais deve prestar contas de tudo o que está realizando. Segundo ele, esta é uma forma de o eleito "submeter-se ao acompanhamento por parte do eleitorado, permitindo-lhe oferecer a sua colaboração permanente de estímulo, de crítica, de controle, de corresponsabilidade e de coparticipação, a fim de atuar ou modificar os programas previstos". 
  Para o especialista, essa iniciativa vai ao encontro de um princípio democrático que, embora originalmente liberal, atende uma legitimidade de todas as correntes políticas: a necessidade de "autonomia da sociedade civil em relação ao aparato do Estado". De fato, a maior participação do cidadão nos processos políticos, administrativos e legislativos o coloca numa posição de protagonista e não mais de refém em relação à coisa pública.
 
  Dificuldades históricas 
  Referindo-se à nossa experiência histórica sobre participação política do cidadão, Aragão cita a primeira obra que narra a História do Brasil, escrita em 1627, pelo frei Vicente do Salvador. "Nenhum homem nessa terra é repúblico, nem zela ou trata do bem-comum, senão cada um do seu particular", escreveu o religioso. Para o especialista, "a ausência de um senso comum impedia que a terra fosse tratada como uma coisa que beneficiasse a todos os que nela habitavam", o que parece explicar a experiência "centrífuga" da formação do Estado brasileiro o que, por sua vez, gerou um Estado central e centralizador, responsável por ditar a formação política da nossa sociedade.
  Já ao fazer referência ao período inicial da nossa República, Aragão vale-se de outro autor - José Murilo de Carvalho - para argumentar que a visão política brasileira permanecia marcada por essa visão elitista a respeito da participação política. "A República brasileira foi proclamada em uma sociedade profundamente desigual e hierarquizada, e num momento de intensa especulação financeira causada pelas grandes emissões de dinheiro feitas pelo governo para atender as necessidades geradas pela abolição da escravidão", explica o especialista. "Neste contexto, não havia preocupação com o público, predominava uma mentalidade predatória, aliada a uma ausência de um sentimento de comunidade, de identidade coletiva de pertença a uma nação", completa.
  De lá para cá, essa postura de falta de compromisso com a coisa pública pouco avançou, não só como demonstram as constantes revelações de atos de corrupção, como também por uma recorrente postura de passividade de grande parte dos cidadãos brasileiros ante a ação da classe política. Sérgio Prévidi - que já foi prefeito no interior do Estado de São Paulo - chama a atenção para o outro lado da questão: o lado de quem é candidato e, depois, é eleito a um cargo público.
  "A dificuldade é que o candidato nem sempre é um político livre, isto é, dono de suas atuações", diz Prévidi. E explica: "Muitas vezes, ao assumir compromissos com os eleitores, ele assume também com outros setores cujos interesses são opostos aos que assume com seu eleitorado. Uma vez eleito, o candidato fica entre cumprir os compromissos com seus eleitores e o compromisso 'comercial ou financeiro' com empresas".
 
  Protagonismo e comunidade organizada 
  Sérgio Prévidi, quando eleito, pôde vivenciar uma experiência significativa com relação a esse pacto político. Ele conta que um dos seus compromissos como candidato foi criar o Plano Diretor da sua cidade. Na ocasião, ele tinha dois caminhos: elaborá-lo com os técnicos e empresários do ramo imobiliário ou com a participação de representantes da comunidade, da sociedade civil organizada, além de técnicos e empresários. "Optei por escrever o Plano Diretor com todos os segmentos da sociedade e com o acompanhamento técnico de especialistas; assim, o grupo foi constituído por aproximadamente 130 representantes", conta Prévidi para quem, o resultado final contemplou o interesse de toda a sociedade local.
  No entanto, em razão da herança histórica de pouco espaço dado à participação do cidadão nas questões políticas de administração pública no Brasil, a esse mesmo cidadão é pedido, no momento atual, uma mudança de postura que sai do imobilismo para o protagonismo. Edelvira José de Godói, de 71 anos, é um exemplo nesse sentido. Aposentada e residente em Porto Alegre (RS), ela mantém um contato frequente com políticos de diferentes esferas do poder (em nível municipal, estadual e federal). Além disso, Edelvira mantém-se informada dos passos de seus representantes, especial-mente pela cobertura da imprensa e participa, com frequência, das sessões da Câmara e da Assembleia Legislativa. Dos políticos com quem mantém contato estreito, Edelvira cobra posições e explicações; para eles, manifesta suas opiniões e oferece sugestões. 
  Ela conta que, em certa ocasião, visitou um vereador e argumentou ser favorável a um projeto de lei que propunha que o teste de glaucoma fosse feito em cada criança que nascesse no município. Mais tarde, durante a sessão da Câmara, embora o projeto fosse iniciativa de um representante da oposição, o vereador insistiu em pedir a palavra no plenário da Câmara e defendeu a proposta para surpresa de todos. Essa experiência influenciou também a própria forma como ela passou a encarar a política, aprendendo a ouvir e considerar a posição de políticos de todos os partidos.
  O exemplo de Edelvira, no entanto, não é tão isolado como pode parecer. Ela integra o Movimento Político pela Unidade e, com outros membros do grupo em Porto Alegre, realiza essa mesma experiência do pacto político coletiva-mente. Edelvira diz acreditar que a atmosfera na Câmara de sua cidade sofreu transformações a partir do momento em que ela e o grupo passaram a manter um relacionamento harmonioso com os vereadores. Um sintoma disso é que a relação entre os próprios vereadores, independentemente do partido político, transformou-se - ao menos em parte - numa relação mais cordial e honesta, avalia. 
  De fato, é um consenso entre especialistas que, além da iniciativa pessoal, os cidadãos precisam aprender a organizar-se e agir coletivamente para fazer valer o pacto político selado com seus representantes no poder. Esse empreendimento significa, antes de tudo, resgatar ou mesmo criar o próprio sentido de comunidade, pelo qual, de acordo com Alexandre Aragão, reconhecemos o semelhante "como ser legítimo com quem se pode e se deve estabelecer uma convivência democrática na construção de um novo mundo solidário e de cidadania plena para todos os seres humanos". Aragão salienta ainda que esse empreendimento implica o fato de ser o povo a reinar sobre o mundo político. "A política é eminentemente uma ação ética e coletiva", diz ele. Mas adverte sobre a experiência brasileira: "Esta lição ainda não aprendemos inteiramente".

Por: Luís Henrique Marques
fonte:http://www.cidadenova.org.br/RevistaCidadenova/ArtigoDetalhe.aspx?id=3938
Julho de 2010